quarta-feira, 18 de julho de 2018

DISCRIMINAÇÃO CONTRA OS TRANSEXUAIS: Ministério Público entra com Ação Civil Pública contra Prefeitura de Garanhuns e Governo de Pernambuco

 

O Ministério Público de Pernambuco (MPPE), através da 2ª Promotoria de Defesa da Cidadania, ingressou na última segunda-feira, dia 16, com uma Ação Civil Pública contra o Município de Garanhuns e o Estado de Pernambuco por negarem o pluralismo da sociedade e por discriminação contra os transexuais.

Na ação, a 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania requer ao Poder Judiciário liminar para obrigar o Estado a reincluir a peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, que constou da programação previamente selecionada do Festival de Inverno de Garanhuns 2018, que tem como tema “Um viva à liberdade!”. O MP requer ainda que, ao final do processo, o Estado e o Município sejam condenados a pagar indenização de dez vezes o valor da peça, com o montante sendo revertido para campanhas contra a discriminação.

Além das medidas adotadas, a Promotoria de Justiça local também encaminhou para a Central de Inquéritos do MPPE, aqui em Garanhuns, diversas ameaças proferidas contra a produção da peça, principalmente através de redes sociais. A meta é que os autores das ameaças sejam identificados, para que medidas criminais contra os agressores sejam adotadas.

“O que está em jogo não é uma peça teatral, mas os princípios Constitucionais do Estado Democrático de Direito e a capacidade do Estado de ser garantidor da liberdade e de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A subordinação do Estado à discriminação estimula o ódio e a violência no seio da população”, observou o Promotor de Justiça, Domingos Sávio Pereira Agra, em trecho da Ação Civil Pública de Obrigação de fazer com Pedido de Tutela Provisória de Urgência Antecipada, encaminhada a Vara da Fazenda Pública da Comarca de Garanhuns.

O Governo Municipal de Garanhuns informou que ainda não foi notificado a respeito do assunto e que só se pronunciará quando tiver a informação oficializada. O Blog do Carlos Eugênio está a disposição do Governo do Estado de Pernambuco para publicar a sua posição quanto a medida adotada pelo MPPE. 

PEÇA SERÁ APRESENTADA EM GARANHUNS – Após ter sido retirada da programação do Festival de Inverno de Garanhuns e de uma campanha nas redes sociais e financiamento coletivo online, organizado por artistas e produtores culturais independentes, a peça 'O Evangelho Segundo Jesus - Rainha do Céu', que traz uma atriz trans no papel de Jesus Cristo, será apresentada aqui em Garanhuns, no próximo dia 27 de julho. “Por uma questão de segurança sua e da equipe do espetáculo, só mandaremos o local da apresentação no dia da mesma, por e-mail”, pontua um aviso postado no site de venda dos Ingressos.

Clique AQUI para ter acesso a Ação Civil Pública na Integra. 




EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE GARANHUNSPE.









O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, através da 2ª Promotoria de Justiça e Cidadania de Garanhuns, por meio de seu representante legal, com fundamento no artigo 129, incisos II e III da Constituição Federal, e com base nos documentos em anexo, vem perante esse Juízo, pelas razões de fato e de direito adiante expostas, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA, NOS TERMOS DA LEI 7.347/85,  em face do:

1)   ESTADO DE PERNAMBUCO, representado pelo seu procurador-geral, nos termos do artigo 75, II, do CPC, com endereço na Rua do Sol, 143, bairro de Santo Antônio, Recife, CEP 50.010-470.
2)   MUNICÍPIO DE GARANHUNS, representado pelo seu prefeito ou seu procurador, nos termos do artigo 75, III, do CPC, com endereço na prefeitura municipal.


I. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS PRELIMINARES: DO DIREITO PROCESSUALAÇÕES COLETIVAS E LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

1. A previsão das ações coletivas para tutela de direitos transindividuais representa a ampliação do acesso à justiça, considerando que uma única demanda ajuizada por um colegitimado legal passa a ser suficiente para a tutela de interesse pertencente a número indeterminado de cidadãos.

2. Os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos nasceram com a Constituição Federal de 1988 e foram materializados com a edição da Política Nacional do Meio ambiente, em 1981; da Lei de Ação Civil Pública - Lei 7.347/85; e do Código de Defesa do Consumidor - Lei 8.078/90, que define tais direitos da seguinte forma:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

3. Os direitos difusos constituem direitos transindividuais e indivisíveis, que ultrapassam a esfera de um único indivíduo, em que a satisfação do direito deve atingir a uma coletividade indeterminada, porém, ligada por uma circunstância de fato.

4. Nesse caso, a indeterminação dos titulares é absoluta, pois não é possível definir de maneira individualizada o titular do direito. Tal natureza indivisível faz com que o direito exista para todos de maneira única, não sendo possível a satisfação de maneira fracionada. É inviável, portanto, que haja satisfação do interesse de um lesado sem que o interesse dos demais seja atendido, uma vez que não é possível dividi-lo.

5. Como leciona José Carlos Barbosa Moreira, os direitos difusos não pertencem a uma pessoa isolada, nem a um grupo nitidamente delimitado de pessoas, mas sim a uma série indeterminada e de difícil ou impossível determinação, cujos membros não se ligam por vínculo jurídico definido.

6. Os direitos coletivos constituem direitos transindividuais de pessoas ligadas por uma relação jurídica base, sendo seus sujeitos indeterminados, porém determináveis. É possível, neste caso, delimitar uma classe ou grupo de sujeitos ofendidos, embora também exista a indivisibilidade do direito, pois não é possível conceber tratamento diferenciado aos diversos interessados coletivamente.

7. os direitos individuais homogêneos são aqueles que transcendem o escopo individual e decorrem de questões sociais, atingindo pessoas determinadas ou determináveis, e cujos direitos são ligados por um evento de origem comum. Tais direitos podem ser tutelados coletivamente mais por uma opção de política do que pela natureza de seus direitos, que são individuais, unidos os seus sujeitos pela homogeneidade de tais direitos num dado caso.

8. A presente ação trata dos direitos de inúmeros cidadãos garanhuenses que têm direito a um Estado e Município que não se submetam a qualquer tipo de discriminação, garantidores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, como previsto pelo constituinte já no preâmbulo da Constituição Federal. Tais cidadãos estão ligados pela mesma circunstância fática, que é residirem num espaço que está sendo submetido a discriminação porque o Município e o Estado de Pernambuco sucumbiram em face de pressões preconceituosas e discriminatórias em relação aos transexuais, propiciando um clima de desrespeito à dignidade da pessoa humana.

9.   Não se trata de pequeno grupo delimitado pela orientação sexual, ou pela cor, ou pela religião, ou pelo local de domicílio. Não se trata, ainda, de sujeitos que, individualmente, sofreram ofensas parecidas. Esta ação visa defender os indivíduos indeterminados que sofreram grave lesão ao seu direito fundamental a um Município e a um Estado não discriminatórios. Não dúvidas, portanto, quanto ao direito difuso ora tutelado.

10. A presente ação busca ainda estabelecer indenização por danos morais coletivos, em face do sofrimento gerado à população pelo clima de hostilidade estimulado pela postura discriminatória dos demandados, para que se recomponha  a tão almejada segurança jurídica, corolário dos direitos fundamentais da pessoa humana.

11. O Ministério Público atua devido à impossibilidade de que todos os diretamente ofendidos possam pleitear em juízo a proteção dos seus interesses pelo Judiciário, levando ao silêncio dos ofendidos, até pelo receio de sofrerem retaliações da mesma força opressora que violou garantias anteriormente. Na ação coletiva, ao contrário da individual, relevância social, pois o trâmite da ação proporciona economia judicial, acesso à justiça e efetividade do direito material. Há, ainda, a dispersão do dano, em decorrência da pluralidade de pessoas lesadas em seu direito.

12. O instrumento processual adequado para defesa dos direitos ora pleiteados é o gênero Ação Coletiva (art. 81, p. ú., III, da Lei 8.078/90) que visa proteger interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, cujo instrumento não se limita à Ação Civil Pública, abrangendo, também, ações mandamentais, cautelares, executórias e outras. Não se confunda ação coletiva com o litisconsórcio, caracterizado pela presença de várias pessoas integrando a relação processual. Vale destacar, também, que a tutela de direitos coletivos ou difusos não se confunde com a tutela coletiva de direitos. Enquanto a primeira cuida da defesa dos direitos transindividuais (essencialmente coletivos), a segunda defende os direitos individuais, que são acidentalmente coletivos.

13. Considerando a importância social da demanda coletiva, exige-se que o processo coletivo seja instrumento hábil e eficaz para dar respostas adequadas aos conflitos de massa. Para tanto, o magistrado pode, por exemplo, flexibilizar regras processuais e determinar de ofício as medidas que julgar necessárias, objetivando legitimar a função social da jurisdição.

14. Se todos os sujeitos do direito lesado propusessem ações individuais, o volume de processos poderia emperrar a máquina judiciária, que não teria como dar vazão às inúmeras ações. Ademais, com a propositura de diversas ações individuais, não haveria garantia de que todas receberiam a mesma solução, podendo ensejar o estabelecimento de desigualdades entre iguais.  Para evitar que os cidadãos tenham seus direitos lesados sem chance de reparação, por força do elevado custo de um processo judicial, bem como para evitar a sobrecarga de ações judiciais e soluções desiguais para o mesmo ato lesivo, o CDC autoriza a defesa dos direitos difusos de forma coletiva, por meio de um único processo.

15. Em suma: a ordem jurídica a necessidade de substituir o acesso individual dos lesados à justiça por um acesso coletivo, de modo que a solução obtida no processo coletivo deve ser apta a evitar decisões contraditórias, além de garantir uma solução mais eficiente da lide, uma vez que o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo lesado.

16. No caso específico dos autos, os direitos lesados são direitos fundamentais, como o direito à liberdade de expressão e à manifestação e, sobretudo, a um estado garantidor de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,  sendo assim de grande importância  a ação coletiva, para que se preservem os fundamentos do Estado Democrático Brasileiro.

17. O Ministério Público surge, neste caso, como substituto a todos esses cidadãos, que na expectativa de exercerem sua cidadania e seu direito ao lazer, à liberdade de expressão e a uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, foram violentados pela conduta ilícita dos demandados, que estimulam o preconceito e a discriminação, traindo a essência do Estado no regime democrático de direito. Com efeito, a legitimação do Ministério Público em defender o interesse desses cidadãos é evidente e mais que justificada.
18. Por fim, a legitimidade do Parquet também pode ser vista a partir da  Nota Técnica nº 8, de 15/3/2016, do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, que pontua: “A ciência não possui definição sobre por que pessoas possuem orientação sexual e de gênero diversa daquelas pelas quais são biologicamente reconhecidas. O fato é que tais pessoas existem e são fortemente marginalizadas nas relações sociais” (...) “Um dos direitos a serem tutelados pelo Estado é a igualdade e a proscrição de toda e qualquer forma de discriminação, prevista no art. 3º, inciso IV, e no art. 5º, caput, e inciso XLI, ambos da CF/1988” (...) “Tais normas constitucionais devem ser necessariamente interpretadas em conjunto com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), o Protocolo de São Salvador (1988), a Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001) e os Princípios de Yogyakarta (Yogyakarta, 2006). – Sublinhamos.


II - DAS RAZÕES FÁTICAS E JURÍDICAS
1. No dia 25/06/2018, a Secretaria de Cultura do Estado divulgou que o tema do 28º Festival de Inverno de Garanhuns será “Um viva à liberdade!”, afirmando o secretário estadual de cultura, Marcelino Granja: “Nesses tempos em que a regressão civilizatória do neoliberalismo tenta impor o pensamento conservador e moralista ao aparelho de Estado, aos meios de comunicação e à cultura atacando a livre manifestação artística, estimulando a intolerância, promovendo a perseguição política e absurdos como boicotes punições a mostras, filmes e a outras obras de arte, estamos garantindo que o FIG será novamente um território livre para fruição da nossa diversidade, da liberdade criativa e de todas as vivências artísticas e culturais, expressão da nossa própria identidade como povo”; no mesmo sentido, a presidente da Fundarpe, Márcia Souto, afirmou: “o Governo do Estado segue empenhado em construir uma programação artística democrática, onde caibam todas as nossas expressões, abrindo espaço para a novidade sem perder de vista a valorização das tradições populares (disponível, dentre outros, em http://boragora.com.br/2018/06/25/liberdade-e-tema-do-fig-2018-programacao-sai-nesta-quinta-28/) – Sublinhamos.
2. Em 29/06/2018, em entrevista a rádio local, o Sr. Prefeito afirmou que não permitiria a apresentação, em prédio público do Município, do monólogo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", justificando que adotou a atitude “como cristão e em respeito à população cristã de Garanhuns, que é a grande maioria, 99 ou 100% da população”, afirmando que “respeita também os transexuais, agora, apresentar uma peça onde diz que Jesus é transexual, é um negócio que a gente fica chateado”; e que “não podemos comungar com manifestações que ferem símbolos sagrados da fé cristã”. (Disponível, dentre outros, em http://www.blogdocarloseugenio.com.br/2018/06/polemica-em-garanhuns-prefeito-nao.html) – Sublinhamos.
3. A presidente da Fundarpe, Márcia Souto, afirmou que a peça estava programada pra ser encenada no Sesc local, voltada para público adulto, às 23h, com capacidade entre 70 e 100 pessoas; o secretário de cultura reiterou que havia ainda outras alternativas de espaço para a exibição e que a escolha da peça, como as demais, foi um processo de curadoria pública que o Festival de Inverno faz há décadas. (endereço eletrônico acima).
4. A atriz protagonista do monólogo, Renata Carvalho, declarou-se aberta ao diálogo com os opositores da peça e expôs como propósito do monólogo a reflexão sobre a exclusão, criminalização e violência contra os travestis (endereço eletrônico acima).
5. Ainda em 29/06/2018, a Câmara Municipal de Garanhuns emitiu nota referindo-se à peça, invocando o respeito à liberdade de crenças, pensamentos e opiniões e afirmando que “diversos embates nascem justamente da satirização das crenças”. (Disponível, dentre outros, em http://www.vecgaranhuns.com/2018/06/polemica-no-fig-em-nota-camara.html) – Sublinhamos.
6. Em 30/06/2018, a Diocese de Garanhuns emitiu nota contra a exibição da peça, invocando “a inviolabilidade da fé e da crença” (artigo 5º, inciso VI, da CRFB) e o artigo 208 do Código Penal, que, literalmente, tipifica como crime escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”; afirmando a Diocese que “a liberdade de expressão artística não pode ferir o sentimento religioso e a identidade cristã de uma inteira população”; paralelamente, cobra dos governos municipal e estadual a “discussão sobre outra perspectiva”, afirmando que “o nosso país é o que mais mata homossexuais, travestis e transexuais no mundo” e que “o Município de Garanhuns está entre os campeões no quesito violência contra a mulher”; a Diocese resolve “proibir que a Igreja Catedral seja utilizada como um dos palcos do Festival de Inverno 2018”, registrando a nota que na Catedral funciona o Palco de Música Clássica Instrumental; conclui a nota conclamando “soluções dialogadas e que gerem uma cultura de paz” (disponível, dentre outros, em http://www.blogdocarloseugenio.com.br/2018/06/bispo-de-garanhuns-se-posiciona.html). - Sublinhamos.
7. Conforme nota oficial divulgada em 30/06/2018, “o Governo do Estado de Pernambuco, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundarpe, decidiu cancelar a apresentação ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’ da Mostra de Teatro Alternativa do Festival de Inverno de Garanhuns de 2018, diante da polêmica causada pela atração e da possibilidade de prejuízos das parcerias estratégicas e nobres que o viabilizam” .(Disponível, dentre outros, em http://www.blogdocarloseugenio.com.br/2018/06/governo-do-estado-cancela-apresentacao.html); – Sublinhamos. Todavia, não chegou ao conhecimento desta Promotoria de Justiça a existência de ato administrativo formal de cancelamento da peça, em que pese a ampla divulgação da nota oficial do Estado.
8. Imediatamente após o anunciado cancelamento, foi divulgada nota oficial do Município de Garanhuns, afirmando: O Governo Municipal de Garanhuns, na sua representação oficial o prefeito Izaías Régis, vem a público manifestar sua satisfação de ver que o clamor da sociedade de Garanhuns num pedido expresso de respeito à fé cristã, que foi transmitido para todo o Estado a partir de uma entrevista sua a uma emissora de rádio, reforçado pela população nas redes sociais, bem como ratificado por instituições religiosas que externaram o seu posicionamento, tenha sido ouvido pelo Governo do Estado de Pernambuco, culminando com a suspensão da apresentação em Garanhuns, do espetáculo "O Evangelho segundo Jesus - a Rainha dos Céus".  Sublinhamos. (Mesmo endereço eletrônico acima).
9. Em livre pesquisa na rede mundial de computadores – internet sobre a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, verificamos o seguinte: a peça é classificada no gênero “monólogo dramático” e mistura depoimento e contação de história para tratar de opressão e intolerância, especialmente a sofrida pelos transgêneros” (https://vejasp.abril.com.br/atracao/o-evangelho-segundo-jesus-rainha-do-ceu/); “O texto da britânica Jo Clifford aproxima Jesus da atualidade ao retratá-lo como uma mulher transgênero. A mudança de paradigma provoca discussão sobre opressão, intolerância, perdão e aceitação.” (https://guia.folha.uol.com.br/teatro/drama/o-evangelho-segundo-jesus-rainha-do-ceu-sesc-pinheiros-3070917664.shtml); foi exibida em Porto Alegre, em setembro/2017, onde a justiça negou pedido de proibição (https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/juiz-nega-pedido-de-proibicao-de-peca-teatral-com-jesus-transgenero-em-porto-alegre.ghtml); foi exibida em São Paulo-SP (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/10/1822464-em-monologo-em-cartaz-em-sp-atriz-travesti-interpreta-jesus-transexual.shtml); em Curitiba, na Catedral Anglicana de São Tiago (https://www.brasildefato.com.br/2018/03/30/peca-o-evangelho-segundo-jesus-rainha-do-ceu-chega-a-curitiba-veja-mais-dicas/); no Rio de Janeiro (http://teatroemcena.com.br/home/jesus-travesti-atrai-multidao-na-lapa-e-faz-apresentacao-extra/); na Paróquia São Lucas de Londrina, da Igreja Episcopal do Brasil (http://dapar.org/2016/notafilo2016/); no Recife, em junho/2018 (http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/terceiroato/2018/06/01/o-evangelho-segundo-jesus-rainha-do-ceu-e-a-cruz-do-preconceito/).
10. A diretora da peça, Natália Mallo, em vídeo disponível em (https://www.youtube.com/watch?v=UKOIHazEN0o), afirma que a peça, escrita por Jo Clifford, dramaturga escocesa, visa a “resgatar o que considera a essência da mensagem de Jesus Cristo – uma ideia de afirmação da vida, afirmação do corpo, amor, tolerância, perdão, solidariedade”, e “uma questão muito séria, a transfobia, a violência de gênero, os mecanismos de opressão, que são estruturais e que regem a nossa vida    “; “traz essa figura de Jesus de uma maneira muito respeitosa, mas é muito também política e provocadora, porque o Brasil é o país mais transfóbico do mundo, é o país que mais assassina  travestis e transexuais; e isso é uma questão muito séria e a gente toca nessa questão”; e convida para diálogo os que questionam o trabalho.
11.  A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL – foi promulgada em outubro de 1988 pelos representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, afirmando-se ainda a promulgação “sob a proteção de Deus” (Preâmbulo da Constituição).
12. Dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil, estão a cidadania; a dignidade da pessoa humana; e o pluralismo político (artigo 1º da CRFB).
13. “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (…) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º da Constituição Federal).
14. O artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil estabelece:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(…)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(…)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; 
(...)
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
15. É dever do Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme o artigo 127 da Constituição Federal de 1988.
16. As curadorias do patrimônio público e social, da educação e da infância e juventude – interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos são de atribuição da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania, conforme a Resolução CPJ 02/2013 (DOE de 7/6/2013),
17. A liberdade de expressão, como qualquer direito, não é absoluta – e encontra limites na própria ordem jurídica vigente, sobretudo no princípio da dignidade do ser humano, o que já foi expressamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal – STF, do que é marco o acórdão cuja ementa abaixo se transcreve:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. (...)13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. (...)
(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)”.
18. “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;” (Artigo 23 da CRFB).
19. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (Artigo 205 da CRFB). E, segundo o artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9.394/96, “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
20. O Estatuto da Juventude – Lei 12.852/2013, garante em relação aos jovens (de 15 a 29 anos de idade – ressalvada a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente), a observância, dentre outros, dos seguintes princípios: promoção da autonomia e emancipação dos jovens;  promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação (artigos 1º e 2º, I e VII);
21. O Decreto da Presidência da República nº 7.107, de 11/02/2010, que promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008, estabelece: “Artigo 2º  A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro. (...) Artigo 7º   A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.” Não se vislumbra na referida peça ofensa a tal estatuto; por outro lado, a própria Igreja Católica se submete ao ordenamento jurídico brasileiro, não podendo o Estado atender a pressões que violem o estado democrático de direito - no caso concreto, que dê margem a discriminação contra os transexuais.

23. “Entende-se por ‘preconceito’ uma opinião ou um conjunto de opiniões, às vezes até mesmo uma doutrina completa, que é acolhida acrítica e passivamente pela tradição, pelo costume ou por uma autoridade de quem aceitamos as ordens sem discussão: ‘acriticamente’ e ‘passivamente’, na medida em que a aceitamos sem verificá-la, por inércia, respeito ou temor, e a aceitamos com tanta força que resiste a qualquer refutação racional, vale dizer, a qualquer refutação feita com base em argumentos racionais. Por isso se diz corretamente que o preconceito pertence à esfera do não racional, ao conjunto das crenças que não nascem  do raciocínio e escapam de qualquer refutação fundada no raciocínio” (...) Existem várias formas de preconceito. Uma primeira distinção útil é aquela entre preconceitos individuais e preconceitos coletivos. (...) Chamo de preconceitos coletivos aqueles que são compartilhados por um grupo social inteiro e estão dirigidos a outro grupo social. A periculosidade dos preconceitos coletivos depende do fato de que muitos conflitos entre grupos, que podem até mesmo degenerar na violência, derivam do modo distorcido com que um grupo social julga o outro, gerando incompreensão, rivalidade, inimizade, desprezo e escárnio. Geralmente esse juízo distorcido é recíproco (...). A consequência principal do preconceito de grupo é a discriminação. (...) Que significa discriminação? A palavra é relativamente recente e foi introduzida e difundida sobretudo em relação à campanha racial, primeiro nazista e depois também fascista, contra os judeus, considerados um grupo ‘discriminado’ com respeito ao grupo dominante. ‘Discriminação’ significa qualquer coisa a mais do que diferença ou distinção, pois é sempre usada com uma conotação pejorativa. Podemos, portanto, dizer que, por ‘discriminação’ se entende uma diferenciação injusta ou ilegítima. Por que injusta ou ilegítima? Porque vai contra o princípio fundamental da justiça (aquela que os filósofos chamam de ‘regra de justiça’), segundo a qual devem ser tratados de modo igual aqueles que são iguais” (...) Apenas posso dizer que os preconceitos nascem na cabeça dos homens. Por isso, é preciso combatê-los na cabeça dos homens, isto é, com o desenvolvimento das consciências e, portanto, com a educação, mediante a luta incessante contra toda forma de sectarismo. (...) creio que a democracia pode servir também para isto: a democracia, vale dizer, uma sociedade em que as opiniões são livres e portanto são forçadas a se chocar, e, ao se chocarem, acabam por se depurar. Para se libertarem dos preconceitos, os homens precisam antes de tudo viver numa sociedade livre.” (Bobbio, Norberto, 1909-2004. Elogio da serenidade e outros escritos morais/tradução de Marco Aurélio Nogueira, - 2ª edição – São Paulo : Editora Unesp,  2011, páginas 103-118). Sublinhamos.

25. Verifica-se, à vista de todo o arcabouço fático, jurídico e teórico acima elencado, que, até prova em contrário, o cancelamento da apresentação da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” no Festival de Inverno de Garanhuns de 2018 pela secretaria estadual de cultura e pela Fundarpe não se encontra devidamente fundamentado no ordenamento jurídico, uma vez que, segundo informado pela própria secretaria estadual e pela Fundarpe, a peça passou por processo regular de seleção e, como visto acima,  não tem o propósito de fazer qualquer ofensa a nenhuma crença, mas sim o de estimular a  reflexão sobre a discriminação social, especialmente dos travestis e transexuais, recorrendo aos valores cristãos do amor, do perdão, da tolerância e da solidariedade, estando em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, dentro dos limites constitucionais da liberdade de expressão artística, não implicando, até prova em contrário, na violação de qualquer vedação legal.

26. Em face da conclusão acima, expedimos a Recomendação 11/2018 (enviada por e-mail na sexta-feira, 06/07, ao secretário estadual de cultura e à presidente da Fundarpe e publicada no DOE de 09/07 - que circulou no dia 06/07), recomendando aos mesmos:
- caso tenha sido emitido ato administrativo formal de cancelamento da peça pelos fundamentos expostos na nota oficial do Estado, diligenciem pela sua anulação, dada a falta de fundamentação jurídica válida, providenciando-se a reinclusão da referida apresentação na grade de programação do FIG/2018, ressalvada a discricionariedade administrativa dentro dos limites da ordem jurídica, que não admite a submissão a qualquer forma de discriminação;
- caso não tenha sido emitido ato administrativo formal de cancelamento reincluam a apresentação na grade de programação do FIG/2018, por não ter sido demonstrada fundamentação jurídica válida para sua exclusão, abstendo-se de qualquer novo ato de cancelamento, com a ressalva acima;
- devendo, em qualquer caso, a Secretaria e a Fundarpe promoverem o diálogo dos responsáveis pela peça com eventuais parceiros que mantenham resistência à sua apresentação, desfazendo mal-entendidos, demonstrando-se o caráter respeitoso da referida peça e aparando-se as arestas que se faça necessário aparar.
27. Ocorre que em entrevista veiculada em rádios locais na quarta-feira, dia 11 de julho, em visita a Garanhuns, o Governador do Estado declarou que não vai atender à recomendação ministerial, reafirmando o cancelamento e que ele se deu em face da polêmica, pois, segundo o Sr. Governador, o FIG teria sido criado para “a unidade e a harmonia”.

28.  Verifica-se, assim, que o Estado insiste em albergar pretensões baseadas no preconceito (PRÉ-CONCEITO) e na discriminação, negando o PLURALISMO afirmado na Constituição em seu preâmbulo, cancelando peça regularmente selecionada para o FIG, o que indubitavelmente não encontra amparo nos critérios de conveniência e oportunidade – pois estes precisam observar os limites do ordenamento jurídico, que não admite qualquer forma de discriminação.


III. DO POSICIONAMENTO DISCRIMINATÓRIO DO MUNICÍPIO DE GARANHUNS E DO ESTADO DE PERNAMBUCO VIOLANDO FRONTALMENTE POLÍTICAS PÚBLICAS LEGALMENTE ESTABELECIDAS PELO ESTADO

Ressalte-se que, no caso em tela, a peça precipitadamente apontada como anticristã pelo gestor municipal, que se negou a ceder espaço do Município para sua apresentação, recorre aos valores cristãos do amor e do perdão, refletindo sobre a intolerância em relação aos transexuais, como esclarecido publicamente por sua diretora e pela atriz protagonista; ao restringir-lhes o espaço público municipal, o Município deixa de atuar como garantidor de direitos para funcionar com agente da discriminação.
Quando se refere à população de Garanhuns como integrada cem por cento (100%) por cristãos e atribuindo aos cristãos em sua totalidade o interesse em impedir a realização da peça, agindo através de seu gestor nesse sentido, o Município ofende duplamente seu dever de garantidor de uma sociedade justa, fraterna e pluralista, pois ignora solenemente a pluralidade da sociedade de Garanhuns e do próprio cristianismo – dando guarida a manifestações discriminatórias e intolerantes e supostamente agindo em favorecimento de setores da sociedade em detrimentos de outros.
Por sua vez, o Estado de Pernambuco contrariou os princípios do Plano de Segurança Pública “Pacto pela Vida”, que prevê “Articulação de ações políticas em prol da população LGBT”, violando também os fundamentos da Lei Estadual nº 12.876/2005, que dispõe sobre estatísticas da violência contra homossexuais, do Decreto 39.542/2013, que a regulamentou, assim como a Portaria 4.818, de 25/11/2013, pois, ao invés de prevenir a violência contra os homossexuais, estimulou-a com a adoção de postura discriminatória.
Ao se referir ao Festival de Inverno de Garanhuns como proposta de unidade – que, na verdade, busca impor, o Estado de Pernambuco também fere de morte o princípio constitucional do PLURALISMO, os princípios da Constituição Estadual, segundo a qual “As ciências, as artes e as letras são livres” (artigo 197, § 1º); fere também a tradição do festival multicultural de inverno de Garanhuns, conhecido nacionalmente por sua diversidade, ainda mais num ano em que tem como tema “Um Viva à Liberdade!”.
Outrossim, o Estado e o Município não podem endossar preconceitos e discriminações, ainda que sob o rótulo de religiosos de qualquer crença – pois o Estado de Direito garante a liberdade de crença, mas repele a imposição de concepções de grupos, religiosos ou não, sobre os demais membros da sociedade.
E nenhum grupo tem o direito de reivindicar para si a propriedade de qualquer crença ou religião – seja ela cristã ou não – cuja diversidade é notória, existindo mesmo grupo que busca conciliar a fé cristã/católica com a diversidade sexual e de gênero (www.diversidadecatolica.com.br/) – e o Estado democrático de direito também não pode negar esse direito de crença.
Em suma, cabe ao Estado garantir uma sociedade justa, pluralista e fraterna.

IV. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS EM JOGO E DO RECONHECIMENTO DA JURIDICIDADE DA PEÇA EM TELA POR DIVERSAS DECISÕES JUDICIAIS

O que está em jogo não é uma simples peça de teatro, mas sim princípios basilares do estado democrático de direito liberal, como o preconizado pela Constituição de 1988, ainda em vigor.
Nesse sentido, a proibição de sua apresentação na programação oficial do FIG/2018, mesmo depois de regularmente selecionada, devido a pressões sem fundamento jurídicos – merece a pronta repulsa do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Em setembro de 2017, o juiz José Antônio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre/RS, negou o pedido de advogado que exigia a interdição da peça no Festival “Porto Alegre em Cena”, promovido pela Prefeitura Municipal.
Disse o juiz, em sua decisão (em https://guiame.com.br/gospel/noticias/peca-que-retrata-jesus-como-transexual-e-autorizada-por-juiz-de-porto-alegre.html):

"Não se pode censurar a peça sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano". – Sublinhamos.

Em outubro de 2017, o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a apresentação da peça, suspendendo a liminar expedida por juiz de Jundiaí-SP (https://oglobo.globo.com/cultura/justica-derruba-liminar-autoriza-peca-com-mulher-trans-como-jesus-21904003).
Ressalte-se, como mencionado acima e verificamos em livre pesquisa na rede mundial de compuadores, que a peça já foi apresentada até mesmo em igrejas cristãs - em Curitiba, na Catedral Anglicana de São Tiago (https://www.brasildefato.com.br/2018/03/30/peca-o-evangelho-segundo-jesus-rainha-do-ceu-chega-a-curitiba-veja-mais-dicas/); na Paróquia São Lucas de Londrina, da Igreja Episcopal do Brasil (http://dapar.org/2016/notafilo2016/) - e recorre aos valores cristãos do amor, do perdão e da tolerância, para refletir sobre a discriminação contra os transexuais.
Quanto ao papel do Judiciário nessa seara, destaca-se o julgado abaixo:
o Supremo Tribunal Federal, no desempenho da jurisdição constitucional, tem proferido, muitas vezes, decisões de caráter nitidamente contramajoritário, em clara demonstração de que os julgamentos desta Corte Suprema, quando assim proferidos, objetivam preservar, em gesto de fiel execução dos mandamentos constitucionais, a intangibilidade de direitos, interesses e valores que identificam os grupos minoritários expostos a situações de vulnerabilidade jurídica, social, econômica ou política e que, por efeito de tal condição, tornam-se objeto de intolerância, de perseguição, de discriminação e de injusta exclusão” (decisão proferida pelo Ministro Celso de Melo em 1º/07/2011, no RE 477554)”.



V. DO DANO MORAL COLETIVO EM FACE DOS SOFRIMENTOS DECORRENTES DO CLIMA DE HOSTILIDADE ESTIMULADO PELO MUNICÍPIO E PELO ESTADO AO ASSUMIREM POSTURA DISCRIMINATÓRIA

A jurisprudência pátria, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, a exemplo da decisão proferida no processo do Recurso Especial nº 1.221.756-RJO, tem reconhecido a ocorrência de dano moral coletivo e a necessidade de sua reparação, sempre que o atentado a interesses difusos seja de:

razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade” e “grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva”.

No caso concreto, as posturas do Município de Garanhuns e do Estado de Pernambuco no episódio contribuíram para o sofrimento e intranquilidade da sociedade em geral e, em particular, da população transexual e travesti, na medida em que esses entes albergaram pressões preconceituosas e discriminatórias, favorecendo um ambiente hostil que culminou com graves ameaças quem vem sendo sofridas pelos artistas que trabalham na peça e a população homoafetiva em geral.
INÚMERAS AMEAÇAS DE AGRESSÃO E DE MORTE FORAM DIRECIONADAS À PRODUÇÃO DA PEÇA E, POR EXTENSÃO, À POPULAÇÃO HOMOAFETIVA – CONFORME JUNTADO EM ANEXO.
É também público e notório que, em face de tais ameaças, a produção da peça, que está disposta a vir se apresentar em Garanhuns no período do FIG, ainda que com meios particulares, está precisando manter sigilo sobre o local e horário da apresentação – o que é uma situação inadmissível no estado democrático de direito http://www.blogdocarloseugenio.com.br/2018/07/com-ingressos-esgotados-polemica-peca.html).
Destaque-se a grave situação de mortes por homofobia no País e no Estado de Pernambuco, conforme noticiado em  em http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-01/levantamento-aponta-recorde-de-mortes-por-homofobia-no-brasil-em):

Em 2017, 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) foram mortos em crimes motivados por homofobia. O número representa uma vítima a cada 19 horas. O dado está em levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), que registrou o maior número de casos de morte relacionados à homofobia desde que o monitoramento anual começou a ser elaborado pela entidade, há 38 anos.
Os dados de 2017 representam um aumento de 30% em relação a 2016, quando foram registrados 343 casos. Em 2015 foram 319 LGBTs assassinados, contra 320 em 2014 e 314 em 2013. O saldo de crimes violentos contra essa população em 2017 é três vezes maior do que o observado há 10 anos, quando foram identificados 142 casos.
Também nesta quinta-feira (18) a organização não governamental Human Rights divulgou um relatório a respeito da violação dos direitos humanos no Brasil. O documento destaca que a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu 725 denúncias de violência, discriminação e outros abusos contra a população LGBT somente no primeiro semestre de 2017.
Levantamento
O levantamento realizado pelo GGB se baseia principalmente em informações veiculadas pelos meios de comunicação. Na avaliação de Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia e um dos autores do estudo, o fenômeno pode ser ainda maior, uma vez que muitos casos não chegam a ser noticiados.
“Tais números alarmantes são apenas a ponta de um iceberg de violência e sangue, pois não havendo estatísticas governamentais sobre crimes de ódio, tais mortes são sempre subnotificadas já que o banco de dados do GGB se baseia em notícias publicadas na mídia, internet e informações pessoais”, comenta.
Causas violentas
Das 445 mortes registradas em 2017, 194 eram gays, 191 eram pessoas trans, 43 eram lésbicas e cinco eram bissexuais. Em relação à maneira como eles foram mortos, 136 episódios envolveram o uso de armas de fogo, 111 foram com armas brancas, 58 foram suicídios, 32 ocorreram após espancamento e 22 foram mortos por asfixia. Há ainda registro de violências como o apedrejamento, degolamento e desfiguração do rosto.
Quanto ao local, 56% dos episódios ocorreram em vias públicas e 37% dentro da casa da vítima. Segundo o GGB, a prática mais comum com travestis é o assassinato na rua a tiros ou por espancamento. Já gays em geral são esfaqueados ou asfixiados dentro de suas residências.
Um exemplo foi o assassinato da travesti Dandara, de 42 anos. Ela foi espancada, apedrejada e depois morta a tiros por oito pessoas em Fortaleza no dia 15 de fevereiro de 2017. Os autores ainda registraram o crime em vídeo, que ganhou grande circulação nas redes sociais.
Distribuição regional
O estado com maior registro de crimes de ódio contra a população LGBT foi São Paulo (59), seguido de Minas Gerais (43), Bahia (35), Ceará (30), Rio de Janeiro (29), Pernambuco (27) e Paraná e Alagoas (23). Entre as regiões, a maior média foi identificada no Norte (3,23 por milhão de habitantes), seguido por Centro-Oeste (2,71) e Nordeste (2,58).


Conforme a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o número de assassinatos de travestis e transexuais em 2017 foi o maior em dez anos (http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-01/assassinatos-de-travestis-e-transexuais-e-o-maior-em-dez-anos-no-brasil).
A hostilidade favorecida pela postura do Estado e do Município ao albergarem pressões discriminatórias contra os transexuais também tende a agravar os já alarmantes índices de suicídios nesse segmento da população, estimulados pelo preconceito e a exclusão social. Nesse sentido: https://antrabrasil.org/2018/06/29/precisamos-falar-sobre-o-suicidio-das-pessoas-trans/).


3. DA TUTELA DE URGÊNCIA

Segundo o novo CPC, as tutelas jurisdicionais provisórias, como o próprio nome diz, não são tutelas jurisdicionais definitivas, mas são concedidas pelo Poder Judiciário em juízo de cognição sumária, que exigem, necessariamente, confirmação posterior, através de sentença proferida mediante cognição exauriente.
Dentre elas, existe a tutela provisória de urgência, cujo tema é o que aqui nos interessa. É assim denominada porque exige inadiável concessão do direito pleiteado.
Pelo texto do art. 300 do novo diploma legal, a tutela de urgência exige demonstração de probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.
Essa tutela de urgência ainda comporta mais duas divisões: a) tutela provisória de urgência antecipada ou satisfativa e b) tutela provisória de urgência cautelar. Trataremos da primeira. A tutela provisória de urgência antecipada/satisfativa assegura a efetividade do direito material. Nela, precisa-se demonstrar ao juiz que, além da urgência, o direito material pleiteado pelo autor estará em risco se ele não obtiver a concessão da medida.
Desse modo, verificada a natureza dos direitos que se pretende resguardar, a espera do provimento final gera o risco de ofensa irreversível à integridade do festival de inverno de Garanhuns/2018, cujo tema é “Um viva à liberdade!” e à credibilidade do Estado como garantidor da liberdade de expressão e do pluralismo social. A peça entrou na grade de programação para ocorrer no dia 26/07/2018, às 23h, para um público adulto entre 70 e 100 pessoas, como informado pela própria secretaria estadual de cultura e pela Fundarpe. Cedendo às pressões preconceituosas e discriminatórias às vésperas do Festival de Inverno; dai a urgência da necessidade de correção do ato ilegal.
Repito: O QUE ESTÁ EM JOGO NÃO É UMA PEÇA TEATRAL, MAS OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A CAPACIDADE DO ESTADO DE SER GARANTIDOR DA LIBERDADE E DE UMA SOCIEDADE FRATERNA, PLURALISTA E SEM PRECONCEITOS - A SUBORDINAÇÃO DO ESTADO À DISCRIMINAÇÃO ESTIMULA O ÓDIO E A VIOLÊNCIA NO SEIO DA POPULAÇÃO.
Esse é o perigo do dano, um dos requisitos exigidos no art. 300, já citado, para a concessão da tutela pretendida.
A segunda condição consiste na probabilidade do pedido, cuja demonstração foi dada no tópico desta inicial que tratou “das razões fáticas e jurídicas”, demonstrando que o pedido que se faz encontra amparo no ordenamento em vigor.
Dessa forma, imperiosa a concessão da tutela provisória de urgência satisfativa para que seja determinado ao Estado de Pernambuco que reinclua, em 24 horas, na  grade de programação do FIG/2018 - “Um viva à liberdade!” - a referida apresentação teatral regularmente selecionada, que estava prevista para o dia 26/7, para um público adulto, às 23h, com capacidade entre 70 e 100 pessoas, conforme a própria secretaria estadual de cultura e Fundarpe informaram – determinando-se também ao Estado e ao Município que diligenciem para estimular o diálogo entre os produtores da peça e os demais parceiros e  a população em geral, desfazendo mal-entendidos e preconceitos, e garantindo a segurança necessária à referida apresentação.

VDO PEDIDO FINAL

Por todo o exposto, o Ministério Público requer:
a) A concessão da tutela de urgência, inaudita altera pars, em todo seu teor e alcance acima elencados;
b) A citação do Estado de Pernambuco e do Município de Garanhuns, processando-se conforme a Lei nº 7.347/85 e o CPC;
c) Designação, após a concessão da tutela de urgência, de audiência de conciliação, conforme prevê o CPC, quanto ao valor da indenização do dano moral coletivo;
d) A procedência do pedido, com a confirmação da tutela provisória em sentença e a condenação dos requeridos pela prática de discriminação contra a população homoafetiva, especialmente os transexuais, e da violação do seu dever de garantidores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos;
e) a condenação do Estado de Pernambuco e do Município ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de dez vezes o custo da referida peça, cada um, a ser revertido em campanhas contra a discriminação da população homoafetiva, especialmente dos transexuais, bem como à obrigação de implantação de políticas públicas efetivas em defesa da população LGBT, e contra a discriminação, em especial dos transexuais, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
O Ministério Público pugna pela produção de todas as provas admitidas em Direito, especialmente: ouvida de testemunhas, inspeção judicial e a juntada de novos documentos além dos que acompanham esta petição e a ela se integram, resguardando-se, ainda, o direito de especificar tais provas no momento processual oportuno, e, desde já, requeremos que se requisite cópia do processo de seleção da referida peça.
Dá-se a causa o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Garanhuns-PE, 16 de julho de 2018.

Domingos Sávio Pereira Agra
Promotor de Justiça


ROL:
Integrantes da curadoria externa do FIG/2018, responsáveis pela seleção da peça teatral.