O Ministério Público de
Pernambuco, por meio da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania, recorreu
da decisão do Juiz Enéas
Oliveira da Rocha, da Vara da Fazenda Pública de Garanhuns, e solicitou ao Desembargador
Evio Marques da Silva, que determine ao Governo do Estado de Pernambuco que
reinclua, em 24 horas, a
peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, que traz uma atriz transsexual
no papel de Jesus Cristo, na programação do Festival de Inverno de Garanhuns
deste ano.
O pedido de Concessão da Tutela
provisória de Urgência Satisfativa foi assinado pelo Promotor Domingos Sávio e
encaminhado a Segunda Turma da Câmara Regional de Caruaru, do Tribunal de Justiça
de Pernambuco no dia de ontem, 23 de julho. Além da reinclusão, o MP também
quer que o Estado e o Município estimulem “o diálogo entre os produtores da
peça e os demais parceiros e a população em geral, desfazendo mal-entendidos e
preconceitos, e garantindo a segurança necessária à referida apresentação”.
CANCELAMENTO
- "O
Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu", cuja atriz transexual Renata
Carvalho é a estrela principal, faz uma releitura de Jesus como se ele vivesse
nos dias atuais como uma travesti, partindo da ideia de que Cristo viveria
entre os marginalizados. O Espetáculo foi retirado da programação do 28º FIG,
pelo Governo do Estado, após a posição contrária do Prefeito Izaías Régis;
reforçada por vários membros da sociedade local, através das redes sociais e de Instituições
Religiosas, inclusive a Igreja Católica, que se pronunciou via nota assinada pelo Bispo Dom Paulo Jackson.
Saiba mais
sobre esse assunto clicando AQUI.
Clique AQUI e confira o Agravo de Instrumento apresentado pelo MP na Integra.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
2ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DEFESA DA
CIDADANIA
COMARCA DE GARANHUNS
EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR RELATOR DA SEGUNDA TURMA DA CÂMARA REGIONAL DE CARUARU, DO
EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO:
1.
RELATÓRIO
O
Ministério Público ingressou com ação civil pública de obrigação de fazer, com
pedido de tutela provisória de urgência antecipada, em face do Estado de
Pernambuco e do Município de Garanhuns, em defesa do direito difuso a um Estado e a um Município garantidores de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, como previsto pelo constituinte já no
preâmbulo da Constituição Federal, e que não se submetam a qualquer tipo de
discriminação.
Aduziu
o Ministério Público, em síntese: o Governo do Estado anunciou enfaticamente o
Festival de Inverno de Garanhuns – FIG 2018, com o tema “Um Viva à Liberdade!”,
divulgando no dia 25/06/2018, que “o
FIG será novamente um território livre para fruição da nossa diversidade, da
liberdade criativa e de todas as vivências artísticas e culturais, expressão da
nossa própria identidade como povo”; em
29/06/2018, em entrevista a rádio local, o Sr. Prefeito afirmou que não
permitiria a apresentação, em prédio público do Município, do monólogo “O
Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", justificando que adotou a atitude
“como cristão e em respeito à população cristã de Garanhuns, que é a grande
maioria, 99 ou 100% da população”; após
a manifestação do prefeito, a presidente da Fundarpe, Márcia Souto, afirmou que
a peça estava programada pra ser encenada no Sesc local, voltada para
público adulto, às 23h, com capacidade entre 70 e 100 pessoas; o secretário de
cultura reiterou que havia ainda outras alternativas de espaço para a exibição
e que a escolha da peça, como as demais, foi um processo de curadoria pública
que o Festival de Inverno faz há décadas; a atriz protagonista do monólogo,
Renata Carvalho, declarou-se aberta ao diálogo com os opositores da peça e
expôs como propósito do monólogo a reflexão sobre a exclusão, criminalização e
violência contra os travestis e transexuais; após manifestações da Câmara Municipal e da Diocese de
Garanhuns contra a inclusão da referida peça na programação, o Governo do
Estado recuou e anunciou em 30/06, por meio de nota, a sua exclusão da Mostra de Teatro Alternativa do Festival de Inverno de Garanhuns de
2018, “diante da polêmica (...) e da possibilidade de prejuízos das parcerias
estratégicas e nobres que o viabilizam”; em face da situação que se tornou
pública e notória e do recuo do Estado diante das pressões recebidas, e após
verificar que a peça, ao contrário do apregoado por alguns setores, trata-se de
um drama e não
apresenta o propósito de fazer ofensa a nenhuma crença, mas sim o de estimular
a reflexão sobre a discriminação social,
especialmente dos travestis e transexuais, recorrendo aos valores cristãos do
amor, do perdão, da tolerância e da solidariedade, estando em conformidade com
o princípio da dignidade da pessoa humana, esta Promotoria de Justiça, em conjunto com
integrantes da Comissão de Promoção dos Direitos Homoafetivos do Ministério
Público de Pernambuco e do Núcleo Regional da Defensoria Pública do Estado,
recomendou ao secretário estadual de cultura e à presidente da Fundarpe a
revisão da decisão de cancelamento da peça – ressalvada a discricionariedade
administrativa, a qual, todavia, não admite submissão a qualquer forma de
discriminação; diante
do não acolhimento da recomendação, o Ministério Público ingressou com ação
civil pública, requerendo a condenação do Estado e do Município
pela prática de discriminação contra a população homoafetiva - especialmente os
transexuais -, e da violação do seu dever de garantidores de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, condenando-os ao pagamento de
indenização por danos morais coletivos a ser revertida em campanhas contra a
discriminação da população homoafetiva, especialmente dos transexuais; o
Ministério Público requereu ainda a tutela
provisória de urgência para que seja
determinado ao
Estado de Pernambuco a reinclusão, em 24 horas, na grade de programação do FIG/2018 - “Um viva à
liberdade!” - da referida apresentação teatral que foi regularmente selecionada
pela Curadoria do Festival, sendo prevista para o dia 26/7, destinada a um
público adulto, às 23h, com capacidade entre 70 e 100 pessoas, conforme a
própria secretaria estadual de cultura e Fundarpe informaram – determinando-se
também ao Estado e ao Município que diligenciem para estimular o diálogo entre
os produtores da peça e os demais parceiros e
a população em geral, desfazendo mal-entendidos e preconceitos, e garantindo
a segurança necessária à referida apresentação.
Após ouvir o Estado, o juízo “a quo” indeferiu o pedido
de tutela provisória de urgência, afirmando, em síntese, que o cancelamento
seria um ato discricionário do Estado, baseou-se em “critérios que traduzem o
princípio do respeito ao sentimento religioso da comunidade” e que não haveria
o periculum in mora porque a peça já
teria conseguido recursos para se apresentar de maneira particular.
É o breve relatório.
2. DAS RAZÕES RECURSAIS
2.1 . DA EXTRAPOLAÇÃO DOS LIMITES DA
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA PELO ESTADO DE PERNAMBUCO
A
oportunidade e a conveniência que integram o conceito de discricionariedade não
se confundem com a oportunidade e a conveniência da Administração ou de sua
gestão, mas devem convergir com o interesse público.
Permitam-nos,
por adequar-se à questão em tela, invocar as seguintes lições dos professores Carlos Alexandre Michaello Marques, Clarice Gonçalves Pires
Marques (disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=11083&n_link=revista_artigos_leitura)., ,
“Demonstrando
pioneirismo e posição de destaque na doutrina nacional, Celso Antônio Bandeira
de Mello (2005, p. 53) resolve a celeuma conceituando Interesse Público como: “o
interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente
têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples
fato de o serem”.
Por estar-se
diante de um conceito jurídico indeterminado, é importante fazer algumas
distinções para melhor situar o conceito deste iminente autor. A Administração
Pública, quando analisada, traz sempre consigo a importância de considerar a
supremacia do interesse público sobre o interesse privado, inclusive por sua
função de princípio implícito do Direito Administrativo.
Desse modo, deve-se
ter claramente que os interesses individuais, particulares ou de um grupo de
influência não podem e não devem ter o condão de incutir novas formas de operar
na Administração em que não estejam presentes os ditames legais e
principiológicos, porquanto esses interesses não representam o bem geral, o bem
comum.
A grande
problemática estabelecida nos últimos séculos, superada essa distinção
preliminar, é oriunda principalmente dos conceitos de Estado existentes a
partir de 1500. A identidade reconhecida entre o interesse público,
interesse do Estado e o interesse soberano neste período não prospera nos dias
atuais, sob pena de subverter-se todo sentido dado ao interesse público.
(...)
Convém
salientar que o interesse público não pode ser considerando como o interesse do
aparato administrativo ou da pessoa do agente público. O Estado através de seus
braços administrativos e por relacionar-se com os demais entes públicos ou
privados torna-se um sujeito de direito. Por essa premissa pode deter
conveniências em relação à sociedade e aos demais sujeitos, deixando em segundo
plano o interesse público.
(...)
Thêmis
Limberger parafraseando Eduardo García Enterría, expoente maior da doutrina,
explica que:
“[...]
a discricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre
alternativas igualmente justas, ou seja, entre critérios extrajurídicos (de
oportunidade, econômicos etc.), não previstos na lei, e conferidos ao critério
subjetivo do administrador. Os conceitos jurídicos indeterminados
constituem-se em um caso de aplicação da lei, já que se trata de subsumir em
uma categoria legal.” (1998, p. 111)”
Aplicando
tais lições ao caso concreto, verifica-se que não há justiça na exclusão de uma
apresentação que, até prova em contrário, foi prévia e regularmente selecionada
pela curadoria responsável por aprovar a programação do FIG 2018, quando essa
exclusão dá-se em face de manifestações contrárias, ainda que compreensíveis,
mas não assimiláveis pelo estado democrático de direito na medida em que exigem a retirada da peça, dada a
manifesta intolerância de tal exigência, aliás, intolerância reconhecida
pelo próprio Estado na resposta escrita da Secretaria de Cultura à recomendação
do Ministério Público (documento em anexo).
Ora, se o próprio Estado de Pernambuco reconhece a
intolerância das manifestações contrárias que visaram a impedir a apresentação,
não existe, no caso, espaço para a discricionariedade administrativa, pois o
ordenamento jurídico não se submete a preconceitos e discriminações – “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária;
(…) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º da Constituição Federal).
2.2. DO CARÁTER INDETERMINADO DO CONCEITO JURÍDICO
DE SENTIMENTO RELIGIOSO
Datissima vênia, a respeitabilíssima decisão recorrida
invoca um conceito jurídico indeterminado – “sentimento religioso” – para
justificar o cancelamento da apresentação – sem, contudo, dizer qual a relação
desse conceito com o caso concreto.
O artigo 489 do Código de Processo Civil
estabelece:
Ҥ
1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial,
seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados,
sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;”
Em que,
concretamente, consiste esse “respeito ao sentimento religioso da comunidade”?
A qual
sentimento religioso o Estado deve se curvar?
Ao sentimento
religioso da fraternidade, da justiça e da igualdade e do amor universal?
Ou ao
“sentimento religioso” da intolerância?
Esse
“sentimento religioso” é reconhecido aos transexuais e aos homoafetivos em
geral?
Ou o
“sentimento religioso da comunidade” e a espiritualidade são propriedade
exclusiva dos heterossexuais?
Em que uma
peça que invoca ficticiamente – e até prova em contrário de forma respeitosa -
a figura de Jesus Cristo para tratar da discriminação e da exclusão dos
transexuais, significa desrespeito ao “sentimento religioso da comunidade”?
A não ser que
façamos uma associação automática entre transexualidade e ofensa, o que seria
uma conclusão preconceituosa.
Verifica-se,
assim, que, ao se referir a conceito indeterminado - “sentimento religioso” - sem explicar o
motivo concreto de sua incidência no caso, a decisão, datissima vênia, não foi suficientemente fundamentada, devendo
ser reformada também nesse aspecto.
2.3. DA
NECESSIDADE DE APROFUNDAMENTO DO EXAME DA RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DO
SENTIMENTO RELIGIOSO, DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DA DISCRICIONARIEDADE
ADMINISTRATIVA
A justa
relação entre os princípios do sentimento religioso e da liberdade de expressão
- tão caros e arduamente conquistados pela sociedade no Estado
Democrático-Liberal de Direito - precisa ser aprofundada, de maneira a se
evitarem extremismos, de um lado ou de outro, e de maneira que a Administração
Pública não acolha manifestações açodadas, preconceituosas ou danosas.
O Estado não
pode admitir que o sentimento religioso, corolário da liberdade de crença – de
natureza pessoal ou comunitária -, impeça outras manifestações igualmente
legítimas – inclusive, como no caso sob exame, também de conteúdo religioso - e
que em nada impedem ou ofendam objetivamente o exercício de qualquer direito de
crença e a celebração dos cultos correlatos.
Referência
nesse tema é o caso abordado pelo STF – Supremo Tribunal Federal, em
11/04/2014, ao examinar a existência de repercussão geral no Recurso
Extraordinário com Agravo 790.813.
Embora o STF
não tenha apreciado o Recurso Extraordinário, por entender ausente o requisito
da repercussão geral (apesar de entendimento diverso do relator origina), o
histórico do caso, abaixo transcrito, aponta luzes para a questão, sendo útil, mutatis
mutandi, ao caso concreto objeto deste agravo (os destaques são nossos):
Decisã
o so bre Rep ercu ssão Ger al
SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
11/04/2014
PLENÁRIO
REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO
790.813
SÃO PAULO
RELATOR :MIN. MARCO AURÉLIO
REDATOR DO ACÓRDÃO: MIN. DIAS TOFFOLI
RECTE.(S) :INSTITUTO JUVENTUDE
PELA VIDA E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S)
:RENATO RESENDE BENEDUZI
E OUTRO(A/S)
RECDO.(A/S)
:ABRIL COMUNICAÇÕES S/A
ADV.(A/S)
:ALEXANDRE FIDALGO
ADV.(A/S)
:ANA PAULA FULIARO
E OUTRO(A/S)
Direito constitucional. Convivência
entre princípios. Limites. Recurso extraordinário em que se discute a
existência de violação do princípio do sentimento religioso em face do
princípio da liberdade de expressão artística e de imprensa. Publicação, em
revista para público adulto, de ensaio fotográfico em que modelo posou
portando símbolo cristão. Litígio que não extrapola os limites da
situação concreta e específica. Plenário Virtual. Embora o Tribunal, por
unanimidade, tenha reputado constitucional a questão, reconheceu, por
maioria, a inexistência de sua repercussão geral.
Decisão: O Tribunal, por
unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por maioria,
reconheceu a inexistência de repercussão geral da questão constitucional
suscitada, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. Não se manifestou
o Ministro
Roberto Barroso.
Ministro
DIAS TOFFOLI
Redator
para o acórdão
Manife
staçã o sob re a Rep erc ussão Ger al
REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO
790.813 SÃO PAULO
Repercussão Geral no Recurso
Extraordinário Com Agravo 790.813
São Paulo
RELATOR :MIN. MARCO AURÉLIO
RECTE.(S) :INSTITUTO JUVENTUDE PELA
VIDA E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) :RENATO RESENDE
BENEDUZI E OUTRO(A/S)
RECDO.(A/S) :ABRIL COMUNICAÇÕES
S/A
ADV.(A/S) :ALEXANDRE FIDALGO
ADV.(A/S) :ANA PAULA FULIARO E OUTRO(A/S)
DECISÃO E PRONUNCIAMENTO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO –REVISTA
“PLAYBOY” – FOTO DE ATRIZ DESPIDA COM ROSÁRIO À MÃO – CONFLITO DE PRINCÍPIOS
– TUTELA DO SENTIMENTO RELIGIOSO VERSUS LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍTISTICA –
VEDAÇÃO DE CENSURA PRÉVIA – ARTIGOS 5º, INCISO VI, E 220 DA CARTA DA
REPÚBLICA – AGRAVO PROVIDO NOS
PRÓPRIOS AUTOS – SEQUÊNCIA – REPERCUSSÃO GERAL –CONFIGURAÇÃO.
1. O Gabinete prestou as seguintes
informações:
O Instituto Juventude Pela Vida e Luiz Carlos Lodi da Cruz
interpuseram recurso extraordinário, inadmitido nab re a Rep erc ussão Ger alorigem, com o objetivo de reformar julgado da Oitava Câmara
de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo
acórdão está assim resumido:
Imprensa. Pedido de proibição de veiculação de revista.
Desrespeito ao sentimento religioso. Matéria com fotos que, na visão dos
autores, ofendem este sentimento. Censura prévia vedada. Ação improcedente.
Recurso provido.
Os recorrentes formalizaram ação de obrigação de não fazer
contra a Editora Abril com o propósito de inibir a circulação da edição de
agosto de 2008 da revista “Playboy”, porquanto veiculada foto da atriz Carol
Castro despida, em página inteira, tendo à mão direita um rosário
identificado pelas contas e pelo crucifixo. Alegaram ofensa ao sentimento
religioso. Foi deferida, parcialmente, tutela antecipada para
impedir a distribuição de novas revistas presente a imagem contestada,
mantidas, nas bancas e em outros pontos de comércio, aquelas já postas em
venda. No mérito, o Juízo deu provimento parcial ao pedido nos termos
assentados quando do pronunciamento liminar.
O Tribunal de origem reformou o julgado, asseverando não ser a
inadequação da imagem suficiente a inviabilizar a divulgação da edição do
periódico, ausente prova de ofensa objetiva a indivíduo ou a instituição
específica. Ressaltou pressupor “considerações ideológico-subjetivas” o
acolhimento da pretensão dos autores, o que extrapolaria os estreitos limites
de motivação de toda e qualquer prestação jurisdicional. Ante o fato de
haver-se buscado, no ensaio fotográfico, retratar
personagens femininos de Jorge Amado, consignou revelarem as
obras do autor “instrumentos adequados de educação e visualização cultural de
um povo em determinado espaço e tempo”. Evocou a decisão do Supremo na Medida
Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.451/DF, relator
ministro Ayres Britto, julgada em 2 de setembro de 2010, para concluir pela
transgressão, no caso concreto, à liberdade de expressão, configurada censura
ao ato de proibir a circulação da revista. Frisou ainda ausência de afronta
aos artigos 187 do Código Civil e 5º, inciso XXXV, da Carta da República.
No extraordinário, interposto com alegada base na alínea “a” do
permissivo constitucional, os recorrentes sustentam, em preliminar, a
repercussão geral da questão veiculada. Quanto ao mérito, dizem do equívoco,
no acórdão atacado, relativamente a entender tutela judicial preventiva,
envolvidas liberdades de expressão e de imprensa, como censura prévia.
Afirmam ser esse um “perigoso precedente generalizante”.
Apontam o artigo 5º, inciso XXXV, da Carta, para destacarem que
o direito constitucional à proteção jurisdicional, incluída a apreciação de
ameaça a direito, alcança a imprensa e, com mais
razão, atividades pornográficas, que não podem ser equiparadas
àquela ou a jornalismo. Mencionam que a censura prévia proibida é a
administrativa, a qual não se confunde com o exercício de jurisdição pelo
Poder Judiciário.
Aduzem que a exibição de um rosário em imagem erótica consubstancia
abuso da liberdade de expressão e ofensa ao sentimento religioso, tutelado
nos artigos 5º, inciso VI, da Constituição e 208 do Código Penal. Salientam
não haver motivo político, jornalístico ou artístico a justificar a
publicação, apenas o desejo de causar polêmica e, assim, aumentar os lucros.
Assinalam não ser a proibição pleiteada limitação à evolução da sociedade ou
ao acesso à cultura e à própria democracia. Pedem seja dado provimento ao
recurso e reformado o acórdão atacado, para impedir a recorrida de publicar
fotografias que vilipendiem símbolos religiosos.
A Editora Abril, em contrarrazões, defende o acerto do
pronunciamento recorrido. Em preliminar, aponta a deficiência de
fundamentação quanto à inobservância ao artigo 5º, inciso XXXV, da Carta de
1988, a pretensão de reexame fático e probatório bem como a ausência de
prequestionamento e de repercussão geral da matéria.
No mérito, sustenta ser a fotografia impugnada “uma verdadeira
manifestação de arte” “dentro dos valores constitucionais permitidos no
Estado Democrático de Direito” – artigos 5º, inciso IX, e 220 da
Constituição. Alega não configurarem pornografia as publicações da revista
Playboy, mas atividade de imprensa. Cita a autonomia e o discernimento de
senso crítico do público adulto, alvo do periódico. Ressalta que não foi
utilizada, no acórdão recorrido, a “imunidade judicial do ofensor ” como
fundamentação, mas que apenas veio a ser assentada a inexistência de violação
ao sentimento religioso.
Sublinha o propósito de homenagear Jorge Amado ante a correlação
entre o título da matéria – “Carol, Cravo e Canela” – e a memorável obra do
autor – “Gabriela, Cravo e Canela”.
Argumenta serem as personagens de Jorge Amado mulheres católicas
praticantes, religiosas, mas “também sensuais”, que “despertam desejos de
outros personagens”, razões pelas quais ter sido montada a fotografia da
forma como foi, sem que isso representasse desrespeito ao catolicismo ou a
qualquer crença.
Aduz competir à sociedade definir o que é moral e eticamente
aceitável em uma democracia, não podendo o Judiciário substituí-la. Alude à
laicidade da República brasileira e ao dever de tratamento igualitário ao
pluralismo de culto religioso – artigo 19, inciso I, da Carta.
O recurso foi inadmitido na origem, sob os fundamentos da
ausência de repercussão geral no tocante à afronta ao princípio do devido
processo legal e de impossibilidade do
reexame de questões de fato.
No agravo, interposto visando a sequência do extraordinário, os
recorrentes sustentam o equívoco da decisão, porque não estariam envolvidas
discussão concernente ao devido processo legal e revisão de provas.
Em contrarrazões, a recorrida diz do acerto do pronunciamento.
O recurso foi protocolado no prazo legal e subscrito por
profissional regularmente habilitado.
2. Eis controvérsia a ser
solucionada por um Tribunal encarregado da guarda maior da Carta da
República.
Conforme asseverado, o Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo assentou consubstanciar censura prévia e
violação da liberdade de expressão artística a proibição de circulação de
revista contendo foto de mulher despida com rosário à mão. Os recorrentes alegam que
atividades pornográficas não se confundem com imprensa e que a associação do
rosário a imagem erótica revela abuso da liberdade de expressão e ofensa
ao sentimento religioso.
Presente conflito entre direitos
fundamentais, compete ao Supremo definir, com vista à orientação de casos
futuros, o equilíbrio adequado entre bens tão caros à Constituição e à
sociedade brasileira como o são as liberdades religiosa e de expressão
artística. Cabe elucidar se a jurisprudência do Tribunal acerca das garantias
de imprensa é observável
no tocante às publicações destinadas
ao público adulto, ou mesmo se essas, por si sós, são merecedoras da tutela
prevista nos artigos 5º, inciso IX, e 220 da Carta Federal.
3. Conheço do agravo e o provejo,
determinando a sequência do extraordinário e reconhecendo configurada a
repercussão geral.
4. Insiram o recurso no denominado
Plenário Virtual.
5. Ao Gabinete, para acompanhar a
tramitação do incidente.
6. Uma vez admitido o citado
fenômeno, colham o parecer da Procuradoria Geral da República.
7. Publiquem.
Brasília, 26 de fevereiro de 2014.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator
|
Depreende-se que o
ordenamento jurídico, conforme entendimento do Tribunal de Justiça de São
Paulo, acima exposto, não admite o impedimento ou a discriminação de atividade
artística em função de “sentimentos religiosos” puramente subjetivos e
indefinidos; do contrário, estaríamos frustrando uma forma básica de expressão
do ser humano – a livre manifestação artística, que não poucas vezes é apontada
como caminho para o espiritual - e a própria noção de espiritualidade, que
pressupõe a liberdade do indivíduo para buscá-la e desenvolvê-la – não podendo
ser resultado de imposições e restrições que não encontram amparo no Direito.
Nesse sentido, o Estado não
pode alegar discricionariedade administrativa para se submeter a restrições sem
amparo jurídico.
Deve o Estado, diante do
conflito de interesses com reflexos em princípios constitucionais, ouvir os
interessados e promover o DIÁLOGO entre os mesmos, com serenidade e firmeza,
sem, todavia, jamais, submeter-se a exigências da intolerância, mas sim
promovendo o respeito mútuo e a convivência pacífica entre diferentes.
Verifica-se na resposta da
Secretaria Estadual de Cultura, através de seu próprio parecer técnico, que “a
apresentação do espetáculo teatral O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu
contribui ao evento e à difusão do Teatro em Pernambuco, por seus atributos
técnicos, artísticos e profissionais” e que a apresentação está de acordo com
“as respectivas políticas públicas (art. 16 da Lei nº 14.104/2010)”.
Dizer que os selecionados
para o FIG não têm direito líquido e certo à efetiva contratação, como afirma a
secretaria estadual de cultura - não dá o aval para excluí-los em face de
pressões resultantes de intolerância reconhecida pelo próprio Estado.
2.4. DO
PERICULUM IN MORA NO CASO CONCRETO
Acolhendo
alegação do Estado, o respeitável magistrado a quo afirma que não haveria mais urgência do pedido porque a peça
já teria obtido a garantia de sua apresentação particular.
Ocorre que,
como destacamos na ação civil pública, o cerne do pedido do Ministério Público
não é a peça teatral, mas o dever do Estado de ser garantidor da liberdade e de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, não se subordinando o
Estado a qualquer forma de discriminação. A apresentação particular depende
exclusivamente do grupo privado e não é objeto da ação civil pública, a qual
busca sanear evidente caso de discriminação institucional praticada pelo Estado
de Pernambuco e pelo Município de Garanhuns, numa clara violação ao princípio
basilares do estado democrático-liberal de direito, patrimônio social de todos
os brasileiros.
A urgência do
pedido decorre exatamente do transcurso do Festival de Inverno de Garanhuns –
que segue até o dia 28/7 - e da iminência da data inicialmente prevista para
apresentação da referida peça – 26/7.
Diante de todo
o exposto, Exmo. Sr. Desembargador Relator, o Ministério Público requer a
concessão da tutela provisória de urgência satisfativa
para que seja determinado
ao Estado de
Pernambuco que reinclua, em 24 horas, na
grade de programação do FIG/2018 - “Um viva à liberdade!” - a referida
apresentação teatral regularmente selecionada, que estava prevista para o dia
26/7, para um público adulto, às 23h, com capacidade entre 70 e 100 pessoas,
conforme a própria secretaria estadual de cultura e Fundarpe informaram –
determinando-se também ao Estado e ao Município que diligenciem para estimular
o diálogo entre os produtores da peça e os demais parceiros e a população em geral, desfazendo
mal-entendidos e preconceitos, e garantindo a segurança necessária à referida
apresentação.
Garanhuns,
23 de julho de 2018.
Domingos
Sávio Pereira Agra
Promotor
de Justiça