“Boa noite, senhor e senhora, eu cheguei agora
vim lhe visitar. Posso chegar em sua residência, que vossa excelência mandou me
chamar?”. Enquanto uns esperavam embaixo de uma moita, se protegendo do sol, os
outros entravam na casa da pessoa e viam se na sala delas cabia o reisado. Era
assim que Benoni Bezerra de Carvalho fazia em sua juventude, quando era Mateus.
“A gente brincava de oito da noite até uma hora da manhã. Quando era amanhã, a
gente tomava um café, botava um baú nas costas e ia pelas estrada. A gente saía
pelo mundo, ficava 30, 35 dias”.
Benoni me
conta da época em que brincar reisado era se aventurar pelo meio do mundo,
compartilhando da brincadeira de casa em casa. E o anfitrião não deixava por
menos, “matava duas, três galinhas, pra aquele povo todo”.
Fiz hoje
o percurso inverso, adentrei eu, a casa dele, que atualmente é mestre do
reisado Os três reis do Oriente, homenageado do FIG 2013 pelo centenário, para
ter uma “palestra” com ele que tanto visitou casas alheias. E fui recebida com
um carinho e um entusiasmo de me sentir totalmente cativada.
Passamos
a tarde eu, Ricardo (o fotógrafo), Clemilson (o motorista) e a esposa de Benoni
a ouvi-lo contar a história de sua vida no reisado, que está totalmente
imbricada com sua biografia, já que começou aos 12 anos, junto a Mestre Cândido
Sertanejo.
Mestre
“Cândio”, como eles gostam de chamar, é figura lendária na região, referência
de todos os brincantes de reisado, foi quem começou o brinquedo. Mestre Benoni,
quem leva hoje o reisado à frente, vai lá dentro buscar a fotografia e mostra
cheio de afeto o retrato dele com seu mestre, que lhe considerava um filho. Na
foto meio apagada pelo tempo, os dois de pé, vestidos com os trajes do
folguedo, nos fitam. Benoni mostra com orgulho um dos poucos resquícios que lhe
sobraram para lembrar-se de seu mestre. “Esse homem brincou reisado 57 anos,
sem falhar um ano”, conta veementemente. E emenda “eu brinco, mas nunca vou
dizer que brinco igualmente a eles”, fazendo referência à Mestre Cândido e
Senhorzinho Barra Nova, mestre que sucedeu o primeiro e antecedeu Benoni.
Mas, não
só na fotografia antiga estão as marcas de Mestre Cândio, elas ainda povoam o
reisado que ele iniciou, seja nas peças de sua autoria, ainda cantadas hoje,
seja na própria formação do grupo, constituída, em grande parte, por pessoas de
sua família. Foi justo uma sobrinha do mestre, Dona Zefinha, quem teve um
sonho, quando seu tio ainda era vivo, sonhou que o reisado dele ia acabar.
Nesse instante que ela contava ao tio, vinha vindo lá Seu Benoni. Mestre
Cândido aponta pra ele e afirma que ele seria o novo mestre.
A função
adquirida há 10 anos deixa Seu Benoni satisfeito “Eu sinto alegria porque eu
vou levar alegria para alguém”. Ele tem plena noção também da importância de
passar a riqueza cultural de sua tradição através das gerações “Eu fico feliz
de passar aquilo que eu aprendi. Hoje eu vou ensinando a meio mundo de
criança”. E é isso mesmo que você percebe no reisado de Mestre Benoni, a
mistura das duas gerações, um senhor de 84 anos brincando junto de uma criança
de 6. Diz ele sobre a homenagem prestada ao seu grupo “ É uma grande honra
estar recebendo essa homenagem de eu mais meu povo estar levando essa
brincadeira tão antiga”.
A
tradição também se mistura com a atualização nas peças do reisado de Benoni, as
dos antigos se somam às de Chicão, amigo de Benoni, que vez por outra cria uma
peça, seja a pedido dele ou por conta própria. Ele canta “Num te alembra do
tempo, benzinho, que nós juntos dois anjos vivia”, de Mestre Senhorzinho e
depois entoa a de Chicão sobre a preservação do Meio Ambiente, que fala que se
não cuidarmos dele, não vai dar mais nem pra respirar.
Estávamos
lá, ouvindo Mestre Benoni cantar, quando ele me aponta assim “aquele ali é
compositor”. Vinha chegando, montado em seu cavalo, o amigo, Zezé Marcolino.
Benoni me cochicha que ele também era mestre de reisado, mas que ele não está
mais brincando há um tempo. E incita “Você tem que voltar com seu reisado”.
A chegada
inesperada de Zezé Marcolino tornou a prosa ainda melhor, velhos amigos,
danaram-se a falar e compartilhar suas trajetórias conosco. Começam, assim como
do costume dos mais velhos, a nos aconselhar “A mocidade da gente passa ligeiro
demais”, diz Zezé Marcolino. E Benoni acrescenta “Eu também ando esquecido, as
peças do computador estão falhando”. Mas é a partir da lembrança do
esquecimento que Benoni recorda de mais uma história pra nos contar.
De quando
foi em Pedra do Buíque cantar o Divino, que são peças que trazem trechos da
Bíblia. Muito difícil de gravar, “é pra ir cantando de palavra em palavra, de
letra em letra”, Mestre Benoni prometeu que se falasse o Divino sem errar ele
louvava o nome de Jesus Cristo. Faltou apenas a última palavra na memória do
mestre, o padre percebendo o feito, começou a bater palma, salvou a
apresentação. E ele cumpriu com sua promessa.
No auge
de seus 71 anos, o mestre conta também de quando sofreu um infarto e não pôde
se apresentar “As veias tudo entupida e eu só pensava no reisado”. E assim,
como enredo perfeito que se fecha, Mestre Benoni encerram nosso encontro, não
sem antes nos convidar diversas vezes para retornar, falando sobre o dia que
sua morte chegar. Diz que já avisou a “seu povo”, que quando seu dia chegar quer
que cubram seu caixão com a coroa e a espada e que cantem peça de reisado no
cortejo de seu funeral. E mais uma vez, lembra de Mestre Cândido, cantando:
“Quando eu morrer todo mundo vai olhar, minha mortalha é um traje de reisado”.
(Por Maria Peixoto/Fundarpe)