Essa é destaque no Caderno C, do Jornal do Commercio
de 8/2/2015:
“Em uma das cenas do
seriado Mad men, um dos belos dramas televisivos da atualidade, o misterioso
personagem do publicitário Don Draper se recusa a falar do seu passado. Eu não
posso falar da minha infância, isso estragaria a primeira metade do meu romance”, brinca. Mesmo na cultura pop, os traumas ou a
idealização da meninice são um dos temas literários mais frequentes e
fascinantes da literatura mundial são a parte mais famosa de Em busca do tempo perdido, clássico de Marcel Proust,
por exemplo, a dor crua do romance Infância, de Graciliano Ramos, e a nostalgia
irreverente ou metafísica de Manuel Bandeira e Clarice Lispector. Ou seja, para
muitos, a infância é realmente uma boa parte das suas obras, sejam ela
memórias, poemas ou ficções.
O escritor e professor
garanhuense Helder Herik não olha para trás na sua infância, como muitos desses
autores. Não é uma avaliação, uma rememoração ou uma saudade que movem a sua poesia.
No livro Rinoceronte dromedário (Cepe Editora), um dos vencedores do Prêmio
Pernambuco de Literatura de 2014, Helder não volta à infância porque, em sua
poesia, ele nunca a deixou: recria fatos e imagens, alimenta-se das confusões e
imaginações típicas de crianças.
Neologismos, frases
intuitivas e inocências aparecem ao longo dos versos, que inventam sentidos
para o mundo que cerca todos nós. Formigas são palavras, sombras são irmãos
gêmeos ao avesso, mentiras são massas de modelar do cérebro. A beleza da
ingenuidade é o que sustenta a obra, uma espécie de dicionário poético, que
continua de forma mais concisa
a temática do livro anterior de Helder, A invenção dos avós.
É impossível não ter a
sensação de que se está lendo uma poesia que tem parentesco com Manoel de
Barros e suas poesias de inutensílios, miudezas e naturezas. Helder acha seus
próprios caminhos, também
afirma que Fraqueza era timidez do corpo, entre outros achados. Helder alia
aqui a sua sensibilidade com uma busca pelas palavras exatas para se expressar e, aqui, exato não quer dizer científico, mas sim
aquilo que procura a perfeição poética.
O total da obra, no
entanto, é mais singela do que impressionante, mais bonita do que capaz de
deslumbrar o leitor. É um volume que segue com passos firmes por uma paisagem
que, no fim, começa a parecer repetitiva onde se via pureza, o leitor pode começar a notar idealização, e onde
havia surpresa, vê expostas vez ou outra as fiações das máquinas de Helder.
Nada que estrague a leitura ou diminua os
feitos da obra. Rinoceronte dromedário reitera que o autor garanhuense é um dos
nomes de destaque da nossa poesia atual, cada vez mais maduro e formatando sua
própria voz.
CLIQUE AQUI E CONFIRA A ENTREVISTA DE HELDER HERIK
AO JC.
JORNAL DO COMMERCIO - Em Rinoceronte dromedário, seus poemas são repletos da potência da ingenuidade. Você tenta enxergar o
mundo assim ainda hoje? Ser poeta é continuar sendo criança de alguma forma?
HELDER HERIK - O meu fazer poético funciona mais ou menos da
seguinte forma: primeiro eu procuro ver as coisas como se fosse pela primeira vez. Ou então eu procuro ver as coisas
pelo seu avesso. Ou então, é como se eu chegasse de outro planeta. Depois eu
procuro escrever como se estivesse na pré-escola, desenhando cada letra,
soletrando. Ou então, eu me desalfabetizo e aprendo a escrever somente naquela
hora. Ou então, eu estico a palavra, as pernas e braços, pescoço e nariz, até
que a palavra fique toda arranhada, abaratada, que é quando a palavra brilha,
se avagalumando. Por tudo isso é que me acho ainda menino. Sou um menino castigado
no corpo de um homem. A pior coisa é ter que trabalhar. Só queria poetar.
Poetar ou aborboletar. Pronto, isso é que era vida!
JC - Em muitos momentos, o livro tem um certo ar de
dicionário poético. Você busca isso na sua obra, desexplicar as coisas, inventar histórias mais bonitas para elas?
HELDER - É que eu não me conformo com o que a palavra é ou com
o que a palavra diz. Ser e dizer ainda é muito pouco. A palavra tem que
espantar, assombrar, encantar. Só dizer é muito pouco, a palavra tem que gritar. O que eu gosto de fazer é sabotar a palavra.
Eu gosto de por cãibra nas palavras. Eu gostaria muito que o leitor tivesse
cãibras nos olhos e na língua. Até na alma, se calhar.
JC - Falar em dislexia é também falar em alguém que lê as
coisas de forma não convencional. Acredita que a inspiração para os seus versos
vem desse modo de enxergar o mundo? A sua poesia é uma dislexia organizada?
HELDER - Eu tenho o maior orgulho de ter dislexia. Acho até que me dá status de artista. Todo
poeta, todo artista e todo louco, deve ter uma fratura na cabeça. Minha fratura
é a dislexia. Acho a maior graça quando leio uma palavra que não existe, quando
escrevo uma palavra em outro idioma. Se não fosse a dislexia eu seria um
sujeito normal, feliz até. Mas eu acho que não quero ser muito feliz. Eu quero
é ser muito poeta.
JC - Além de neologismos, Rinoceronte dromedário tem uma
dicção particular, com inversões de frases, lacunas intencionais. Como foi trabalhar nisso, para que ficasse aberto e
compreensível ao mesmo tempo?
HELDER - Eu queria fazer um livro cuja linguagem fosse bem
próxima da linguagem de uma criança. Eu só aprendi a ler e escrever aos 12 anos
(ainda hoje, acho que nem sei fazer bem
uma coisa ou outra). Desaprendi a ler e escrever para compor o livro. Limpei-me
das erudições. Fiquei feto. Daí ter ficado com a sensação de ter os meus 12
anos de novo.
JC
- Pelo
tema e pelo olhar, os versos do livro dialogam muito com a tradição da poesia de Manuel de Barros e
me lembram um pouco também a poesia de Fabricio Carpinejar. Os dois são
influências suas, de alguma forma?
HELDER - Pode parecer que não, mas as minhas maiores
influências literárias são João Cabral e minha avó, Bertoleza. Com Cabral eu vi o que a poesia não deve ser (didática),
com a minha avó o que a poesia deve ser (imagética). De resto acho que minha
poesia se irmana com a de Manoel de Barros, Fabrício Carpinejar, Manuel
Bandeira e Mário Quintana. São poetas-irmãos! Somos!
JC - Tem novos trabalhos sendo gestados?
HELDER - No segundo semestre devo lançar A loucura como
estratégia de sobrevivência, poemas. E venho escrevendo um livro para crianças.
Acho que as crianças são a evolução de humanidade.