“É bastante comum o questionamento dos veículos de comunicação a
respeito da possibilidade legal de se divulgarem fatos, cujos processos que os
discutem tramitam em segredo de justiça.
Embora sigilo e segredo sejam comumente tratados como sinônimos, os
vocábulos não se confundem. O primeiro é derivado do latim sigillum, que representa a ideia de algo sobre o
qual recai um sinal, uma marca, que não pode ser revelada. Já o segredo, do latim secretum, passa a ideia de que determinado
conhecimento não pode ser revelado. Assim, podemos interpretar que o secretum corresponde ao conteúdo da “carta” e
o sigillum à maneira
como alguém emitente garante a sua inviolabilidade. Entretanto, como dito, sigillum e secretum são tratados como sinônimos em nosso
ordenamento.
A Constituição Federal de 1988 estabelece em
seu artigo 5º, LX, que somente a Lei poderá restringir a publicidade dos atos
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.
Percebe-se pelo texto constitucional que o legislador constituinte, inspirado
pelos valores republicanos, cuja premissa é expor as coisas do Estado ao
público, sequer utilizou o vocábulo sigilo ou segredo, preferindo utilizar
restrição como exceção ao valor substancial da publicidade.
A publicidade, do latim publicus,
de publicare, passa a ideia de expor ao público, e é considerada uma garantia
fundamental de controle democrático, que, como leciona o professor Rogério
Lauria Tucci, representa a garantia de que o procedimento observa a legalidade
e permite à sociedade formar opinião.
A leitura do texto constitucional, associada à ideia iluminista de que
a publicidade permite à sociedade um controle e acompanhamento dos atos do
processo, num claro e evidente valor republicano, já nos permite responder
afirmativamente que não há “assunto” em sigilo, mas tão somente atos
processuais em sigilo, exatamente para preservar intimidade ou interesse social
que mereçam essa exceção, tratada pelo constituinte como restrição ao valor
maior da publicidade. A restrição, ao contrário de mitigar ou diminuir o valor
da publicidade, na verdade a enaltece, indicando a preferência do Estado
brasileiro pelos atos públicos.
Assim, se a Imprensa teve acesso a informações que gozam de interesse
público e que possuem um mínimo de veracidade, ainda que tais fatos estejam
sendo discutidos em processo sob o instituto do sigilo, não nos parece haver
qualquer impedimento de se publicar o “assunto” lá tratado.
Não se está aqui a defender a divulgação de atos do processo em sigilo,
tais como atas, documentos, petições, despachos, decisões (para isso, há de se
ponderar os valores fundamentais em aparente conflito) mas sim que o assunto
pode ser objeto de material jornalístico, necessitando para isso se averiguar a
existência de interesse público e verossimilhança dos fatos.
Não há, portanto, normativo constitucional ou infraconstitucional que
impeça a divulgação de “assunto” de interesse público, ainda que decorrente de
processo sigiloso.
Também há de se analisar a licitude do meio empregado pelos
profissionais da Imprensa, na medida em que a obtenção da informação
jornalística por meios ilícitos é condenável. Nesse sentido, temos que a
obtenção de informações mediante interceptação telefônica clandestina, invasão
de domicílio, tortura, ameaça retiram a licitude da publicação.
Portanto, havendo interesse Jornalístico, verossimilhança dos fatos e
sendo legal o meio de obtenção das informações, qualquer tutela jurisdicional
que proíba a divulgação de notícia mediante o argumento de que o assunto está
sendo tratado em processo que tramita em segredo constitui, a nosso ver, uma
ilegalidade, violando o normativo constitucional que prestigia a liberdade de
expressão e à publicidade conferida à coisa pública.
Recentemente, tivemos alguns episódios cuja discussão pautava-se
exatamente nesse equilíbrio de forças e princípios. Para citarmos apenas dois,
lembramos do impedimento que a revista eletrônica Consultor
Jurídico sofreu por veicular
notícia jornalística a respeito de uma decisão que impedia a exibição de peça
teatral inspirada no assassinato da menina Isabella Nardoni. Os autos em que a
mãe da criança litigava com os autores da obra teatral tramitavam em segredo,
tendo o juízo determinado, em razão da veiculação da notícia jornalística a
respeito da existência do processo, que fosse retirado o material jornalístico
sob o argumento de violação do sigilo decretado naqueles autos.
Outro caso recente teve como protagonista a revista IstoÉ, que havia publicado, em meados do ano de
2014, informações da delação premiada do ex-diretor da Petrobras, cujo
depoimento apontava para o então governador, hoje ministro da Educação, Cid
Gomes. O atual ministro da Educação resolveu ajuizar ação cautelar com pedido
de recolhimento de toda a edição, sob o fundamento de que os autos em que houve
a delação premiada estavam em sigilo, de modo que a publicação teria cometido
uma ilegalidade ao falar sobre o assunto e divulgar o seu nome.
Nas duas situações, o Supremo Tribunal Federal (RCL 18566 / RCL 18638)
garantiu a informação mesmo que reveladora de assunto cujo processo em que ele
é discutido tramite em sigilo, podendo ser destacado a ponderação o ministro
Roberto Barroso: “Embora as informações em questão aparentemente estejam
protegidas por segredo de justiça, não há elementos mínimos para concluir que a
violação tenha partido dos profissionais da Imprensa que receberam informações.
Embora possa ter havido ato ilícito por parte de quem tenha eventualmente
comprometido o sigilo de dados reservados, a solução constitucionalmente
adequada não envolve proibir a divulgação da notícia (...).”
RCL 18.638 MC/CE, Rel. MIN.
ROBERTO BARROSO
Caso entendêssemos que o sigilo nos autos do processo impede a publicação
do assunto, como defendido nas ações referidas acima, bem como acolhido pelos
juízos singulares, a tutela jurisdicional requisitada privaria a sociedade de
tomar conhecimento de assunto que consulta o seu interesse, em evidente
violação ao artigo 5º, XIV, da CF, bem como cercearia a imprensa de seu direito
constitucional, de valor republicano e democrático, de publicar assunto de
interesse público.
Como disse o ministro Teori Zavascki para levantar o sigilo do processo
de investigação dos envolvidos na operação lava jato, é importante,
até mesmo em atenção aos valores republicanos, que a sociedade brasileira tome
conhecimento dos fatos relatados. Ora,
como exigir da sociedade uma reflexão crítica se defendermos que as cortinas (velum) permaneçam fechadas inclusive para os
assuntos tratados em processo sigiloso?
Como ensina Norberto Bobbio, em sua obra O Futuro da
Democracia: "Que todas as decisões
e mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano
sempre foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o
governo direto do povo ou controlado pelo povo (e como poderia ser controlado
se estivesse escondido?)". (Extraído
da coluna do Advogado Alexandre Fidalgo, no site Consultor Jurídico. CONFIRA)